3. Yan
O olhar de 666 está cheio de ira. Ela raramente demonstra tais emoções. Na maior parte do tempo, ela está perdida em seus próprios pensamentos, fingindo que eu não estou aqui. Tento fazer o mesmo, mas consigo sentir o cheiro dela através das paredes, o que é uma loucura. Tentei passar o máximo de tempo possível longe daqui, caçando Duques para os Anciões, mas dia após dia, me vejo voltando para o porão.
Para ela. Para essa mulher que eu odeio com todas as fibras do meu corpo por ter destruído minha vida.
Aposto que ela se pergunta por que a sequestrei. Eu me pergunto a mesma coisa várias vezes ao dia. Ela não estaria aqui se não fosse pelo meu anjo. Ele foi quem exigiu que eu a trouxesse, mas com que propósito, eu não sei. Ela não significa nada para mim. Ela é apenas um dos experimentos de Azael.
Assim como eu.
Assim como 517 foi.
Indy.
O nome dela é o que faz meu coração acelerar e parar ao mesmo tempo. Se não fosse por Azael e 919, Indy ainda estaria viva. Ela seria minha esposa, e eu daria o mundo a ela. Agora, só posso colocar flores em seu túmulo.
Indy pode não estar mais viva, mas sempre honrarei sua memória e o amor puro que existia entre nós. Ela me entendia de uma maneira que ninguém mais conseguia. Perder ela foi uma tragédia da qual nunca vou me recuperar, não importa quanto tempo passe. No dia em que 919 a matou, minha alma morreu com ela.
Não há nada em 666 que se destaque para mim em particular. O cabelo dela é… muito loiro, e os lábios são muito cheios. Sem mencionar os olhos.
Meu anjo suspira como se quisesse dizer o que há de errado com os olhos dela. Eles são azuis, e eu odeio azul. É a mesma cor dos olhos de Azael. Olhar para ela me lembra do que Azael fez comigo, mas não posso me permitir esquecer o que foi feito, então me forço a encarar seus olhos enquanto revivo os horrores pelos quais passei.
Se ao menos ela tivesse outra cor de olhos, eu não sentiria essa raiva cada vez que sou obrigado a descer aqui e alimentá-la. Por mais que eu queira me afastar dela, não posso deixá-la morrer de fome. Cirro e Rin não saberiam como cuidar dela. Cirro provavelmente esqueceria completamente dela e Rin está ocupado demais ajudando todos os outros Senhores a matar Duques.
Por enquanto, 666 está presa comigo.
Não apenas porque meu anjo está obcecado por ela, mas por muitos outros motivos.
Ela não é apenas uma hellstar, mas também a mulher responsável pela morte do pai de Alekos. Rin deixou claro várias vezes que está pensando em como informar Alekos e seus irmãos de sangue que 666 está viva e que a escondemos em nossa casa desde dezembro passado.
Eu não dou a mínima para Alekos. Não devo nada a ele. No entanto, Rin insiste que os Senhores precisam estar unidos agora mais do que nunca. O que Rin não entende é que eu não sou um Senhor. Também não sou um Duque. Eu sou... diferente. Algo novo.
Pego o copo do chão, ligeiramente irritado por 666 não ter terminado o smoothie. Ela terá a outra metade no jantar, decido enquanto saio do porão pela porta que leva à lavanderia. Há outra porta que leva ao quintal, mas depois de anos trancado em uma pequena cela, espaços grandes fazem... meu anjo perder o controle.
O cheiro de bacon e ovos vindo da cozinha me lembra que mal comi hoje. Quando eu ainda estava na instalação médica, geralmente comia uma vez por dia, mas havia vezes em que ficava dias sem comer. Privar o experimento de comida era um dos métodos que Azael usava para controlar todos, já que fome geralmente significava fraqueza. Ele queria os homens que ele atormentava e experimentava ajoelhados, implorando por migalhas de comida. Às vezes, isso acontecia, mas eu me recusava a me curvar diante de Azael. Aqueles que o faziam geralmente se tornavam seus cachorrinhos. Ninguém jamais colocará uma coleira em mim, especialmente o monstro que tirou tudo de mim—da minha dignidade ao amor da minha vida e a companheira do meu demônio.
Steven está sentado à mesa enquanto Rin está no fogão fritando ovos. O bacon está cuidadosamente empilhado em um prato.
Desde que Levi foi morto e Steven perdeu dois de seus irmãos de sangue, ele tem passado muito tempo com Rin, o que significa que ele está aqui quase todos os dias. Às vezes, as paredes parecem se fechar sobre mim, mas não posso dizer nada porque esta não é minha casa.
Se não fosse pela minha sede de vingança, eu já teria ido embora há muito tempo. Eu iria viver nas montanhas e esperar pelo dia em que meu demônio ou anjo devorasse minha alma. Estou muito danificado para ter uma vida normal. O que diabos é normal para alguém como eu?
No momento em que meu anjo superar sua fixação com 666, e Azael estiver fora de cena, eu vou embora. Rin não precisa de mim. Ele tem seus próprios problemas para lidar.
“Ovos com bacon de novo?” resmungo.
Rin revira seus olhos desiguais para mim. “Se você quer outra coisa, faça você mesmo.”
Meu primo é um homem de hábitos. Gosta de usar as mesmas roupas, comer a mesma comida e assistir ao mesmo programa—The Big Bang Theory.
“Talvez eu faça,” digo. Cozinhar não é tão difícil. Você coloca algumas coisas na panela, mexe um pouco e voilà, a comida está pronta.
Coloco o resto do smoothie na geladeira.
“Isso é o quê, o décimo dia que ela se recusa a beber essa porcaria?” Rin pergunta por cima do ombro. “Você pode forçar ela a fazer o que você quer, mas todo mundo tem um limite.”
Me encosto no balcão e cruzo os braços no peito. A cicatriz deixada pela operação que fiz há cinco meses ainda me incomoda, mas era isso ou doar um rim para me livrar do rastreador ou estourar meus miolos, de jeito nenhum eu voltaria para Azael depois de finalmente escapar de suas garras. Só Deus e eu sabemos como consegui fugir sem ser pego por 917, um dos cães de guarda mais leais de Azael.
“Smoothies são bons para a saúde,” retruco.
Rin coloca bacon e ovos em um prato e me entrega junto com um garfo. “Não quando você não come outra coisa além de smoothies há meses.”
Dou uma mordida no bacon e aproveito o sabor. O gosto é rico, mas meu estômago se revira depois da segunda mordida e leva segundos para uma dor surda se instalar no fundo do meu estômago, então coloco o prato no balcão.
A maioria das pessoas não sabe como é sorte poder comer sem que o corpo se volte contra elas.
Steven olha primeiro para mim, depois para Rin. “Vocês estão falando sobre sua mulher misteriosa?”
Rin dá de ombros, sem querer responder. Ele se senta ao lado de Steven e começa a comer.
Nunca quis que uma palavra sobre 666 fosse dita a ninguém, mas Rin se empolgou um pouco demais uma noite quando estava bêbado e mencionou acidentalmente em uma reunião dos Lordes que temos uma mulher em nossa casa. Todos assumiram que estávamos falando de nossa mulher.
“Então, quando vou conhecer essa mulher que é tão especial que vocês se recusam a deixá-la sair de sua gaiola dourada?” Steven pergunta.
A ideia de alguém que não sou eu perto de 666 enche meu demônio de raiva. “Nunca,” sibilo.
As sobrancelhas de Steven se erguem. “Ela deve ter a melhor buceta do mundo se você está tão determinado a manter a identidade dela em segredo.”
Rin quase se engasga com a comida.
“O quê?” Steven continua intrometido.
“Ele não transa com ela, ele só...olha para ela por horas,” diz Rin.
A raiva explode dentro de mim. “Fique fora dos meus assuntos,” digo antes de sair de casa.
Há um pequeno lago a algumas propriedades de distância. Os donos raramente estão em casa, então usei o lago como meu refúgio por meses. Corro até lá, e assim que chego ao lago, tiro minha camiseta, tênis e meias, ficando apenas com o short. Pulo nas águas escuras.
Seria tão fácil mergulhar e nunca mais voltar à superfície.
Meu demônio não concorda, mas meu anjo está mais do que pronto para encontrar Indy na próxima vida.
Desistir não é uma opção, não enquanto Azael ainda está por aí.
Além disso, ainda preciso descobrir o que há em 666 que faz meu demônio ficar tão obcecado por ela.
Meu anjo bloqueia todas as minhas emoções para que eu possa planejar a queda de Azael.
‘Não se esqueça de 919*,’* meu anjo me lembra.
Para localizar 919, preciso descobrir para onde ele e os outros experimentos foram depois que a instalação foi destruída.
O amigo de Rin, Rueben, pode ter uma pista.
‘E o Maddox?’ meu anjo pergunta em seguida.
Maddox não é uma opção.
Como meu anjo está ouvindo meus pensamentos, ele se pergunta, ‘Por quê?’
‘Ele traiu os Lordes. Ele tem sorte de estar vivo,’ lembro ao meu anjo. Meu demônio ouve a conversa em silêncio.
Um resmungo vem do meu anjo. ‘Mas você não é um Lorde e não deve lealdade a eles. Maddox pode te ajudar a encontrar 919. Ele tem os recursos que você não tem. Além disso, Indy era irmã dele. Ele quer vingança tanto quanto você.’
‘Devo falar com Rin sobre isso,’ tento argumentar.
Meu anjo rebate, ‘Qual Rin você vai falar?’
Eu odeio quando meu anjo está certo. E odeio ouvir sua voz, falar com ele. Isso só significa que meu tempo está curto. Posso ter apenas meses antes que minha alma seja consumida.
‘Vou pensar sobre Maddox,’ termino a conversa.