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Mudando as tonalidades

O quarto onde o mantêm é insuportavelmente frio. Eu tremo assim que entro, mesmo estando embrulhado no casaco mais grosso que encontrei nos meus aposentos. O frio atravessa tudo, se instalando profundamente nos meus ossos. Mas A Criatura—ele parece completamente à vontade. Sua pele é lisa, as escamas ao longo dos braços e pescoço brilham em tons de azul-petróleo e azul-gelo, mudando quase como a superfície de um oceano gelado. Sua presença inteira parece pertencer a este lugar, como se ele fosse um pedaço de gelo ou pedra, esculpido deste mundo frio e inóspito.

Essa revelação não deveria me surpreender. Já li o suficiente sobre criaturas das profundezas do mar que prosperam em lugares frios e isolados, longe do alcance humano. A Criatura não está apenas adaptada para sobreviver aqui; ele evoluiu para isso. Este frio é seu lar, seu santuário. É onde ele está seguro, longe da ameaça iminente. Nós, os humanos. É como se a mãe natureza estivesse ajudando essa criatura a evoluir para mantê-la em uma atmosfera segura, longe daqueles que experimentariam nele. Aqueles como nós.

A parte ética de mim, no entanto, não consegue se livrar da culpa. Sinto como se estivesse invadindo, como se estivesse observando um animal em um zoológico em vez de interagir com outro ser, alguém com sua própria vontade, seus próprios pensamentos. Drayton e os outros o veem como um espécime—uma anomalia. Mas toda vez que olho em seus olhos, vejo uma inteligência, uma profundidade que me diz que ele é muito mais do que isso. E me pergunto, o que está passando pela mente dele enquanto ele me encara do outro lado do vidro? Ele sente o mesmo desconforto que eu? Ele sabe o quão preso está?

Minha mão coça com a necessidade de tomar notas, de registrar essas observações em uma linguagem cuidadosa e clínica. Mas a caneta permanece intocada no meu bolso. Meu treinamento me incita a documentar tudo, a tratar isso como uma oportunidade científica valiosa. No entanto, toda vez que vejo a criatura, sinto esse puxão de empatia que me impede de seguir adiante. É um conflito estranho entre minha curiosidade científica e a ética de tratar uma criatura, ou melhor, uma pessoa, como um espécime de laboratório.

Ainda mais perturbador, sei que estão me observando. Cada passo que dou, cada olhar que compartilho com Kael, estou sob vigilância. Não é apenas por protocolo—eles não confiam em mim. As palavras de Drayton permanecem na minha mente, um lembrete das fronteiras invisíveis estabelecidas por esta instalação. Eles me contrataram pela minha expertise, mas também estão monitorando cada interação, prontos para intervir se eu me desviar muito dos objetivos deles. É inquietante saber que cada movimento meu está sob escrutínio. Mas se eu for cuidadoso, se mantiver meus próprios pensamentos guardados, talvez eu possa aprender algo sem revelar minhas intenções.

A Criatura também me observa, seus olhos afiados, azul-escuros e quase prateados na luz fria. Vejo meu próprio reflexo no vidro e, por um momento, é como se estivéssemos espelhando um ao outro, dois cativos de cada lado de uma linha invisível. Me pergunto se ele pode sentir meu desconforto, meu próprio isolamento estranho neste lugar. Talvez seja por isso que ele me estuda com tanta intensidade, seu olhar inabalável e sem piscar, como se estivesse tentando me entender tanto quanto eu estou tentando entendê-lo.

Suas escamas mudam sutilmente de cor, e noto um padrão, um movimento suave de ondulação. Elas mudam, quase como um camaleão, dependendo de sua saúde. Eu tinha visto isso antes, a maneira como sua cor havia desbotado na sala mais quente, sua pele assumindo um tom pálido, quase doentio. Mas aqui, no frio, suas escamas são vibrantes e vivas, suas cores ricas e mutáveis. É como se ele tirasse força do frio, cada camada de escamas brilhantes como gelo um testemunho de sua resiliência.

Um dos guardas, posicionado a poucos metros de distância, se aproxima, provavelmente alertado pelo silêncio. Não é o Ben, ele está do lado de fora da porta. Parece que Drayton não quer que eu me aproxime muito de ninguém aqui. O Guarda Desconhecido é muito rigoroso, não fala nem me diz seu nome, apenas fica ali me observando atentamente, sua expressão neutra, mas sua presença imponente. Não consigo evitar de me sentir preso, restrito. Quero fazer perguntas à Criatura, entender o que ele sente, o que precisa para estar bem, mas tudo aqui é tão rígido, tão calculado. Mesmo os guardas, embora aparentemente indiferentes, são treinados para antecipar qualquer violação do protocolo.

A Criatura se mexe, seu olhar piscando para o guarda por um breve momento antes de voltar para mim. Sua expressão é indecifrável, mas há um leve brilho de frustração ali, uma tensão ao redor dos olhos e da boca. Me pergunto se ele entende, se sabe que estou tão constrangido por este lugar quanto ele.

"Dr. Adams, por favor, mantenha distância," diz o guarda, sua voz plana, embora suas palavras contenham um aviso claro. "Estamos aqui para observar, não para interagir."

Eu aceno com a cabeça, forçando-me a dar um passo para trás, embora minhas mãos se fechem ao lado do corpo em frustração. A necessidade de alcançar, de comunicar, é quase esmagadora. O olhar da Criatura me segue, e sinto uma leve tristeza ali, uma impotência compartilhada.

Minha curiosidade luta contra as limitações impostas por este lugar. No frio, sua pele parece mais lisa, quase translúcida. Posso ver o traçado tênue das veias sob as escamas, uma rede delicada de linhas prateadas que pulsam levemente, dando-lhe uma beleza estranha e hipnotizante. Seus dedos são membranosos, os ossos mais finos e flexíveis do que mãos humanas, embora haja força ali também. Me pergunto o que mais ele pode fazer—como ele se move na água, que outras adaptações estão escondidas sob sua superfície.

Enquanto o observo, um pensamento estranho me ocorre: ele é provavelmente a coisa mais próxima de um verdadeiro predador oceânico que a humanidade já encontrou. No entanto, aqui está ele, preso, enjaulado, vulnerável aos caprichos de humanos que o veem como nada mais do que uma anomalia científica. A ironia é tão amarga quanto o frio nesta sala. Não consigo imaginar como ele deve se sentir, estar tão fora de lugar, tão despojado de sua dignidade natural.

O pensamento desperta algo em mim, um sentimento que não posso ignorar. Eu não deveria estar aqui, observando-o assim, confinado a uma barreira de vidro. A distância entre nós parece uma traição a tudo que defendo. A Criatura é inteligente, parece possuir emoções e respostas complexas. Tratá-lo como algo menos do que isso parece uma violação fundamental da ética, uma traição à minha própria integridade como cientista.

O guarda pigarreia, um lembrete dos meus limites, e sinto uma onda de raiva que me surpreende. Odeio essa configuração, esse ambiente frio e estéril que me obriga a negar meus próprios instintos. Cada parte de mim quer diminuir essa distância, alcançar e tratar a Criatura com o respeito que ele merece. Mas não posso—não aqui, não agora. Não enquanto estão observando cada movimento meu.

Olho de volta para a Criatura, encontrando seus olhos mais uma vez. Há um entendimento silencioso entre nós, um reconhecimento compartilhado das fronteiras que nenhum de nós pode cruzar. Nesse momento, faço uma promessa silenciosa a mim mesmo: não vou deixá-los reduzi-lo a um mero sujeito, a uma nota de rodapé em algum relatório frio. Vou encontrar uma maneira de honrar sua existência, de dar-lhe a dignidade que ele merece, mesmo que isso signifique desafiar todas as restrições que me impuseram.

O guarda se mexe, impaciente. Meu tempo aqui está quase acabando. Forço-me a me virar, a sair da sala fria, cada passo mais pesado que o anterior. Estou furioso, isso tem que parar.

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