




Carrasco, parte II
Assim que joguei o isqueiro aceso em direção à gasolina, dei uma tragada no meu primeiro e único cigarro.
Sentindo todas as mentiras sendo queimadas pelo fogo ao lado do homem que um dia foi meu marido, os intensos olhos azuis prometendo e jurando um amor inexistente a cada batida, forçando minha mente por um único momento a pensar que eu era culpada pela maldade deles.
Estou perdendo a sanidade?
Perdendo-me da realidade?
O cigarro acabou, e as chamas continuam a consumir todo o combustível, o cheiro de carne queimada deve ter se impregnado na minha pele.
Mas eu queria estar ali e em nenhum outro lugar do mundo, ver aquele que por um único momento foi o ar que eu respirava, o dominador do meu demônio virar cinzas é como gozar sem ter sexo. E por mais que ninguém pudesse tomar o lugar dele, mesmo na morte ele é minha dor mais profunda, minha cicatriz mais aberta e mais exposta ao sol.
O sonho de uma vida feliz e de construir um amor puro junto com uma grande família é meu sonho de comercial de margarina que acabou de virar fumaça.
Eu esperava que em algum momento o arrependimento me atingisse, que a dor me deixasse entorpecida, que eu arfasse por ar. Ainda assim, por alguma piada do destino, senti meus pulmões puxarem ar confortável pela primeira vez, senti prazer preenchendo minhas veias. Revirei os olhos para a bagunça, aquele foi o único momento de desconforto que senti.
Beba-me, alimente-me e deixe-me mostrar-lhe a luz.
Meu demônio parecia finalmente livre de suas correntes e por alguma loucura, isso é reconfortante.
Peguei o álcool da prateleira ao lado e caminhei até o machado sujo na mesa, com uma flanela limpa, comecei a limpar o sangue, sentindo o cheiro de ferrugem e vendo o machado brilhar.
Continuei o mesmo processo com cada faca, cada navalha, cada agulha e cada alicate, todas as últimas vinte e quatro horas que passei aqui valeram a pena. Cada grito de dor presente na memória guardada especialmente em um lugar onde o passado não pode ser esquecido.
E agora cada parte de mim pagou um preço para se manter, respirei o mais fundo que pude, encostando na parede, pegando o celular da prateleira, desligando o som e abrindo a porta. A escuridão me abraçou como um velho amigo, subindo cada degrau eu esperava sentir algum remorso e tudo o que senti foi um imenso nada.
Caminhando pela casa escura, tateando as paredes em busca de algum apoio para minhas pernas cansadas, consegui chegar ao quarto, e como em uma oração silenciosa conectei meu celular ao sistema de som, me joguei na cama sem me importar com o número de chamadas perdidas ou mensagens.
Suspirei, perdendo a realidade enquanto sentia o sangue encher minha boca depois de cortar meus lábios mordendo-os.
Ele poderia ter perdido a sanidade e ainda assim, não importava.
Sangue, fogo, cinzas.
O sussurro em sua mente trouxe o primeiro sorriso aos seus lábios e aquele pequeno sentimento nunca iria embora. Dentro do banheiro notei que o som já havia desligado porque talvez o celular finalmente tivesse morrido, com a cabeça lívida saí do banheiro com uma toalha segurando a bolsa na qual coloquei todas as evidências que poderiam incriminar e manchando a casa inteira de sangue, deixei a bolsa ao lado da porta da frente para não esquecer de tirar o lixo, mesmo sem saber se era dia de coleta ou que dia era.
Caminhei até o balcão da cozinha onde costumava deixar o carregador e o conectei na tomada, sentindo um pequeno choque na mão e uma bolinha vermelha aparecer instantaneamente na ponta do meu dedo.
A dor não incomodava mais, talvez ela tivesse sido a única verdadeira companheira em todos esses anos. Mudei um pouco para a esquerda, abrindo a porta da geladeira e pegando o suco de laranja, o leite e dois ovos. Preparei a frigideira e quebrei os ovos, pegando uma chaleira para fazer um café coado e colocando-a no fogo, peguei um copo e o enchi de suco, observando os ovos estalarem dentro da frigideira enquanto o estalo dos ossos quebrando preenchia minha mente e meus ouvidos.
A chaleira apitou e o cheiro dos ovos começou a queimar, desliguei o fogo e coloquei os ovos em um prato raso, coei o café com a máxima calma e precisão como a arte que é. Pegando minha maior xícara, enchi-a de café e completei com leite até transbordar quando a levantei do balcão, dei um gole, sentindo meu estômago agradecer pela comida que lhe havia sido roubada. Olhei para o copo ainda cheio de suco, o conteúdo se espalhando pela cozinha misturando-se com as gotas de sangue de cada ferida aberta.
O som de um carro lá fora não me surpreendeu, e quando uma das poucas pessoas com a chave da minha casa entrou, o silêncio pesou e o ar que entrava pela porta esfriou a casa.
Seus olhos procuraram algo na casa que nunca mais estaria lá, a compreensão parecia alcançar seus pensamentos, absorvendo meu pequeno café da manhã. Sua aproximação lenta não foi surpreendente, mas seu silêncio pela primeira vez na vida me incomodou.
Os olhos tão escuros quanto os meus, o cabelo liso e a barba bem cortada marcando a pele clara, pela primeira vez na vida entendi a escuridão nos olhos do meu irmão.
Talvez os piores monstros não sejam os que criamos, talvez os piores monstros sejamos apenas nós mesmos.
Puxando a coxa de frango que estava na minha frente em um silêncio ensurdecedor, respirei fundo e devolvi a xícara de café, não me incomodei com a porta da frente aberta, os passos de quem entrava preenchiam o pequeno espaço entre o sofá e a cozinha.
Stefano fazia questão de dizer que ela não merecia uma casa grande, que seu corpo ficaria deformado se engravidasse, a pequena casa que eu aprendi a odiar por ser uma prisão, as paredes de um verde ridículo, sem ter a menor opção de redecorar ou qualquer coisa.
Levantei a cabeça e observei em silêncio, sentindo uma calma incrível dentro de mim.
Cada olhar carregado de uma pergunta que eu não podia responder até que a fome acabasse, e o pior é que essa fome não parava o desejo de rebobinar cada momento como um filme sentindo cada sensação ao fechar os olhos, quando os abri me vi refletida nos olhos escuros, dei um pequeno sorriso, sentindo o desejo do monstro de se vangloriar.