




1. A NOITE DOS ESCOLHIDOS
O cĂŠu estava nublado, pequenas gotas caĂam, transmitindo uma sensação estranha que parecia refletir meu estado de espĂrito. Algo assim jĂĄ havia acontecido em Lysandria, e eu me lembrava perfeitamente do dia em que perdi minha mĂŁe. Foi um dia como este, nublado e chuvoso.
Fecho os olhos, e imagens do momento mais desesperador da minha vida reaparecem. Estou ajoelhada, segurando a mĂŁo da minha mĂŁe. Ela estava em trabalho de parto, mas como somos de uma cidade simples, nĂŁo podĂamos pagar por um hospital, entĂŁo uma parteira estava lĂĄ para ajudar. O som da chuva lĂĄ fora parecia ecoar minha angĂşstia, como se o cĂŠu chorasse comigo. Minha mĂŁe, com a respiração ofegante, olhou para mim com olhos cansados e sorriu, tentando encontrar forças para confortar sua filha. Era um sorriso fraco, mas cheio de amor.
"Sua irmã estå chegando, Nyra," ela sussurrou com um esforço tremendo. "Você serå uma irmã maravilhosa, eu sei disso."
LĂĄgrimas encheram meus olhos naquele momento. Minha mĂŁe significava tudo para mim, minha confidente, minha protetora, minha melhor amiga. E agora, eu estava prestes a assumir uma nova responsabilidade, cuidar da minha irmĂŁzinha.
A parteira continuava a trabalhar diligentemente, mas eu não conseguia afastar a sensação de que algo estava errado. Minha mãe estava com muita dor, mais do que eu jå tinha visto ela suportar. Ela apertava minha mão com força, os olhos fechados em agonia.
E entĂŁo, durante a tempestade lĂĄ fora, ouvi um choro fraco, o choro de um bebĂŞ recĂŠm-nascido. Meu coração se encheu de alĂvio e esperança, mas esse sentimento foi rapidamente substituĂdo pelos suspiros abafados da parteira â algo estava errado, muito errado.
Quando a parteira finalmente se afastou, a sala ficou em silêncio, exceto pelo som da chuva lå fora. Ela olhou para mim com olhos tristes e balançou a cabeça. Eu sabia o que isso significava antes mesmo de ouvir suas palavras.
"Sinto muito, Nyra," ela disse suavemente. "Sua mĂŁe fez um sacrifĂcio incrĂvel para trazer sua irmĂŁ ao mundo, mas... ela nĂŁo sobreviveu ao parto."
Meu mundo desabou naquele momento. Minha mĂŁe, meu porto seguro, meu tudo, se foi. Olhei para o pequeno ser chorando em seus braços, minha irmĂŁzinha, minha Ăşnica famĂlia agora. Uma mistura de amor e dor me inundou enquanto eu a segurava pela primeira vez. Eu sabia que tinha que ser forte por ela.
A chuva lå fora continuava como se o cÊu chorasse comigo. Eu havia perdido minha mãe naquele dia, e a memória desse evento triste ficaria comigo para sempre. Era uma dor que eu carregava no fundo do meu coração, uma ferida que nunca cicatrizaria de verdade.
Dias como este eram dolorosos para mim, como se fossem um sinal de que algo ruim estava prestes a acontecer; a angústia era inevitåvel. Respirei fundo, tentando controlar a ansiedade que essas lembranças me causavam quando percebi. Furei meu dedo com a agulha, e o sangue começou a brotar do pequeno ponto. Passei-o sobre meu vestido, tentando contê-lo, tomando cuidado para não manchar as roupas que eu estava costurando.
Para sustentar a mim e minha irmĂŁ, tornei-me costureira na cidade, uma jovem que costurava, lavava e passava roupas. Conhecia esta cidade como a palma da minha mĂŁo, que, apesar da minha juventude, jĂĄ estava cheia de calos e queimaduras. Eu nĂŁo conseguiria ficar calma, nĂŁo com esse tempo lĂĄ fora.
Nossa vila era conhecida por sua tranquilidade, mas naquele dia, o caos fez sua presença ser sentida. Minha irmã mais nova brincava perto da janela, alheia à turbulência que se aproximava. Sentada à mesa, meus dedos batiam nervosamente enquanto eu observava a chuva, sentindo que algo estava prestes a acontecer.
Então, o trovejar de cascos rompeu o ar, ecoando pelas ruas silenciosas. Homens desconhecidos em capas pretas emergiram atravÊs da cortina de chuva, suas capas encharcadas esvoaçando como asas escuras, enviando um arrepio pela minha espinha enquanto eu os observava se aproximar. Meu coração batia dolorosamente no peito.
Minha irmĂŁ correu para mim, seus olhos curiosos e inocentes buscando explicaçþes para o que estava acontecendo. Eu a abracei com força, um gesto automĂĄtico de proteção, embora eu nĂŁo soubesse do que estĂĄvamos nos protegendo. O lĂder dos cavaleiros avançou, com sua postura imponente e olhar gelado penetrando o meu.
"Viemos buscĂĄ-la," ele disse, olhando diretamente para minha irmĂŁ.
"O que vocĂŞ quer dizer? Quem sĂŁo vocĂŞs? O que querem com minha irmĂŁ?" ConfusĂŁo se misturava com medo dentro de mim.
"Lord Blackwood exige sua presença," ele declarou, suas palavras carregadas de um significado que eu nem entendia. Quem era Lord Blackwood e o que ele queria com minha doce irmã?
Ela se agarrou ainda mais forte à minha cintura, seus olhos cheios de lågrimas enquanto procurava respostas. Eu sabia tanto quanto ela, mas a determinação crescia dentro de mim.
"Ela nĂŁo vai a lugar nenhum com vocĂŞs. Quem ĂŠ esse senhor?" A resposta veio como um eco vazio, me deixando ainda mais nervosa.
"Lord Blackwood ĂŠ nosso mestre e ele exige que a levemos para o sacrifĂcio."
Meus olhos se arregalaram com suas palavras, um arrepio de horror percorrendo minha espinha. SacrifĂcio? As palavras soaram como um soco no peito, uma revelação horrĂvel que me fez questionar tudo. Minha irmĂŁ, tĂŁo jovem e inocente, nĂŁo poderia ser levada de nĂłs para ser oferecida como algum tipo de prĂŞmio. Eu nĂŁo podia permitir isso. NinguĂŠm iria levar minha irmĂŁ.
Em um gesto instintivo de proteção, coloquei-a atrĂĄs de mim, seus dedos agarrando as laterais do meu vestido, enquanto eu encarava de perto o lĂder dos cavaleiros, extraindo de dentro de mim uma determinação que eu nem sabia que tinha. Minha voz tremia, mas falei com uma convicção que eu nĂŁo sabia que possuĂa.
"VocĂŞ nĂŁo vai levar minha irmĂŁ. Se esse Lorde deseja alguĂŠm, entĂŁo que ele me leve."
O cavaleiro parece ponderar minhas palavras por um momento, seus olhos frios me avaliando. Sinto o medo pulsando dentro de mim, mas tambÊm uma determinação crescendo. Ele me avalia de perto, seu olhar percorrendo todo o meu corpo atÊ voltar aos meus olhos.
"Certo, quantos anos vocĂŞ tem?" Minha mente se confunde com sua pergunta, o que minha idade importa neste momento?
"Minha irmã tem 11 anos, ela Ê apenas uma criança. Leve-me, sou mais velha que ela, tenho 19." Um sorriso perverso apareceu em seus låbios, fazendo-me dar um passo para trås enquanto ele empurrava minha irmã em direção às escadas.
Ele se aproximou lentamente de mim, me encurralando contra a parede. Sua mĂŁo grande tocou meu rosto com malĂcia.
"VocĂŞ ĂŠ virgem?"
Que audĂĄcia tem esse homem sem escrĂşpulos. Ele invade minha casa e assusta a mim e minha irmĂŁ, achando que tem o direito de arrastĂĄ-la para fora de casa para levĂĄ-la a um homem desconhecido.
"O que isso importa para vocĂŞ? Vai me levar ou nĂŁo?" Encaro seus olhos, irritada com sua pergunta.
Sua aproximação se torna muito desconfortåvel, seu rosto estå tão perto do meu que sinto nåuseas. Ele desliza os dedos pela minha bochecha atÊ o queixo, segurando-o firmemente, me obrigando a encarå-lo.
"Se vocĂŞ nĂŁo for virgem, entĂŁo levarei sua irmĂŁ. Afinal, nĂŁo sabĂamos que havia duas de vocĂŞs."
Tento me afastar de seu toque, mas sua mão agarra meu braço com força, me deixando imóvel no lugar.
"Responda-me!"
As palavras soam como uma ordem, sua voz implacåvel e fria. Por mais que eu lute para articular uma resposta, minhas cordas vocais parecem presas pelo medo que me consome. Meu peito sobe e desce em respiraçþes råpidas e superficiais, meu coração batendo tão forte que parece prestes a escapar do meu peito. Seu olhar se desvia do meu, virando-se para o lado como se minha incapacidade de responder o tivesse desinteressado.
"JĂĄ que vocĂŞ nĂŁo vai responder, acho que sua irmĂŁzinha seria perfeita para o ato."
"Não! Você não vai levå-la! Você não tem esse direito!" Meu coração saltou de pânico e, finalmente, a paralisia que me dominava pareceu dissipar-se.
Ele me solta abruptamente, sua mĂŁo liberando meu braço como se eu fosse algo desprezĂvel. Vejo-o se virar em direção Ă s escadas, e meu medo se transforma em determinação. Minhas pernas tremem enquanto dou alguns passos em sua direção, lutando contra o terror que ainda me cerca.
"Volte aqui!" Minha voz sai trĂŞmula, mas carregada de uma mistura de raiva e desespero. NĂŁo posso deixĂĄ-los levar minha irmĂŁ, nĂŁo posso permitir que ela seja submetida a algo terrĂvel e desconhecido.
Paro em frente às escadas e atraio sua atenção com o grito que sai dos meus låbios. "Eu sou..." Engulo em seco, meus låbios tremendo de desespero. "Eu sou virgem!"
Ele para nas escadas, enquanto seu rosto se vira para mim, um sorriso malicioso aparecendo em seus lĂĄbios, como se minha resposta fosse suficiente para seu prĂłximo movimento.
Ele tira o capuz, me dando uma visão completa de suas feiçþes, loiro com olhos tão azuis quanto o mar.
"Então podemos levar você. Mas saiba que, se estiver mentindo, serå o seu fim." Sua mão grande envolveu meu braço com força, deixando uma marca indelÊvel na minha pele.
"Me solte!" Minha voz explodiu com uma força que me surpreendeu, uma força desconhecida surgindo dentro de mim. Com um impulso desesperado, liberto meus braços de seu aperto. Minha respiração estå råpida, e minha pele pulsa onde ele me tocou.
"Vou sozinha, só preciso me despedir da minha irmã." Encaro seu olhar, minha determinação agora mais forte do que nunca.
Meus olhos procuram minha irmã, uma mistura de dor e resolução preenchendo meu coração. Aproximo-me dela, sentindo a gravidade da despedida iminente.
"Escute, meu amor," digo, minha voz falhando. "Farei o que for preciso para nos proteger. VĂĄ direto para a casa da Martina e explique o que aconteceu."
Ela me olha com olhos cheios de lågrimas, um entendimento passando entre nós sem precisarmos dizer uma palavra. Eu a abraço com força, um gesto que transmite mais do que qualquer frase poderia expressar. Depois de um momento, me afasto, colocando minhas mãos em seus ombros e olhando profundamente em seus olhos.
"Lembre-se, vocĂŞ ĂŠ mais forte do que pensa. E vamos sair dessa juntas, eu prometo."
Minha irmã acena com a cabeça, tremendo, uma lågrima escorrendo por sua bochecha. De coração partido, me afasto dela, voltando minha atenção para o homem que ainda espera.
"Vamos, ande logo!" Sua voz ĂŠ uma ordem implacĂĄvel, e sinto sua mĂŁo forte agarrando meu braço, me arrastando para fora de casa. O choro da minha irmĂŁ ecoa pela sala, perfurando meu coração com uma angĂşstia inexprimĂvel. Sua dor, sua confusĂŁo, tudo isso ressoa dentro de mim enquanto sou forçada a me afastar dela.
"Nosso mestre ficarĂĄ satisfeito com nosso trabalho. Mas nĂŁo diga uma palavra sobre ela ter uma irmĂŁ. Ele deixou claro que nĂŁo poderia haver outra, e teria que ter entre 19 e 20 anos." Ele continua a falar, suas palavras como punhais adicionais Ă minha dor.
Sua revelação Ê chocante, uma confirmação sombria de que tudo isso foi orquestrado de maneira sinistra. Meus pensamentos se voltam para as implicaçþes disso, mas minha visão começa a embaçar quando sinto um pano úmido sobre meu nariz, com um cheiro forte que me då uma sensação de leveza, deixando meu corpo relaxado.
"Bom, assim podemos mantĂŞ-la quieta. AtĂŠ chegarmos a Eldermere, haverĂĄ o sacrifĂcio para Lord Blackwood."