




Pesadelos e sonhos
O corpo de Lita rígido enquanto ela emergia do lamaçal turvo. Tropeçando pra frente, ela mal conseguia manter a cabeça acima da água. Seus pés encontraram uma borda rochosa, e ela se lançou para a frente, enrolando os dedos dos pés na lama nojenta que um dia foi terra. O primeiro passo foi o mais difícil, seus músculos gritando contra o movimento. Lita gemeu, forçando-se para a frente. Ela estava descalça e avançava pela água pantanosa em direção à margem. Por que ela não estava em terra firme? A jornada parecia interminável, a água impossivelmente espessa e gelada enquanto encharcava suas pernas. Que fedor desgraçado era esse? Gasolina queimada? Ela tossiu, lançando um braço para cima enquanto seu estômago revirava. Lita vomitou a água do pântano, líquido fedorento respingando em sua camiseta fina. Ela conseguiu andar até que o inchaço molhado estivesse apenas até seus joelhos, mas o vômito não parava de jorrar de todos os lugares. Por que havia água em seu estômago? Ela tentou entender enquanto lutava contra a sensação de vertigem.
Lita se obrigou a rastejar para fora das profundezas viscosas e para a margem esburacada. Tudo em seu corpo ardia e doía. Havia uma dor pesada e irradiante em sua omoplata, dois arranhões sangrando em suas panturrilhas, líquido quente e suave se acumulando em um lado de seu rosto, e cortes afiados e formigantes em suas costas.
Ela não podia parar pra checar os machucados. Havia algo que ela precisava fazer. Algo... Ela rastejou e se arrastou pela margem em direção ao carro quebrado que avistou por entre a densa vegetação, ignorando todas as dores agudas que sentia cortar através dela. Galhos se enfiavam em suas costelas, pedras arranhavam seus joelhos. Ao atingir o topo, Lita pôde ver o que restava do carro. O para-brisa estava estilhaçado, a frente amassada como um pedaço de papel de caderno em volta de um enorme tronco de árvore. O que um dia foi um belo muscle car parecia irreconhecível. Sangue escorria pelo lado do passageiro do capô em direção ao pântano. O dela.
Apesar do tremor em suas mãos, Lita não olhou mais de perto para ver os pedaços de pele que deve ter deixado para trás. Suas costas teriam sido dilaceradas, mas não havia espaço para pensar nisso. Ela apenas conseguiu distinguir a fumaça da estrada no topo da colina íngreme e que os braços de metal retorcido que um dia foram a mureta estavam inclinados em direção às árvores. Tudo o que ela conseguia ouvir era o sibilo do motor e o sangue em seus ouvidos.
Lita se esfregou contra a sujeira e as folhas picantes até chegar ao lado do motorista. Ela precisava desesperadamente encontrar seu irmão mais velho. Havia uma ligação invisível entre eles e no momento em que o carro se chocou contra a árvore, ela sentiu aquela ligação se romper. Seu corpo foi lançado pelo ar e não havia nada para puxá-la de volta para ele. O que isso significava? Lita não queria saber. E de alguma forma, aquela dor era pior do que todas as suas outras lesões combinadas.
Quando o carro que vinha na direção oposta perdeu o controle, ultrapassou a divisória e os atingiu, ela não teve tempo para reagir. Desamarrada e quase fora da jaqueta jeans que estava usando quando voaram pela mureta e caíram, Lita voou também. Ela só teve tempo de se sentir no ar e ouvir o vidro quebrar antes de sentir o golpe agudo da água do pântano expulsando o ar de seus pulmões. Então ela morreu.
Só que não.
Ela se arrastou em volta da porta do lado do motorista, que puxou desesperadamente até que se abriu. Lita olhou e quase desmaiou quando os olhos sem vida de seu irmão a encararam. Estendido sobre o volante em uma curva horrível que parecia partir suas costas ao meio, o sangue de James escorria sobre o painel dianteiro. Seu braço se estendia em direção ao lado do passageiro. Estava tentando agarrá-la? Empurrá-la para a segurança?
Lita caiu para trás sobre os galhos afiados e as pedras, arrastando-se com as mãos feridas para longe do carro. Ela não podia vê-lo daquele jeito.
Se ele tivesse torcido aquele braço entre o peito e o volante... se não tivesse recebido o impacto total... talvez... Ela não conseguia respirar. Ou pensar. A pele de Lita esfriou, o calor escapando dela a cada batida desenfreada de seu coração. Aquilo não era seu irmão. James era indestrutível. Forte. Ele não podia morrer. Ele não podia olhar para ela daquele jeito, como se ele tivesse partido, levando seu coração com ele.
Lita acordou de supetão duas horas antes do despertador das sete, toda suada e tremendo. Sua mente sempre levava um momento para se recuperar após um pesadelo. Cada inspiração trêmula a assegurava de que estava bem. Mas era uma mentira. Seu irmão estava morto, nada estava bem.
Os treinos na academia estavam ajudando a exauri-la todos os dias, o que mantinha os pesadelos afastados na maioria das vezes, mas não os bania por completo. O suor grudava nela e nos lençóis enquanto ela se arrastava pra fora da cama e caía no chão no frio escuro da madrugada. Ela levou um momento para reunir seus sentidos e acalmar seus nervos antes de trocar os lençóis suados e seguir para o chuveiro.
A água quente a abraçou num vapor denso enquanto ela esfregava o sabonete nas cicatrizes agora cicatrizadas em suas costas e ombros. Felizmente, os arranhões em suas panturrilhas tinham sarado, mas ela ainda estava insegura sobre suas costas, então nunca as expunha. As lembranças eram muito dolorosas para ela.
Enquanto trabalhava o sabonete contra si mesma, teve que admitir como seu corpo estava tonificado. O mês na academia estava fazendo maravilhas. Ela havia desenvolvido um apetite um pouco melhor por necessidade, pois seu corpo precisava de combustível. E todo o levantamento de peso havia devolvido alguma forma ao seu corpo, especialmente entre a cintura e os quadris. Até mesmo sua tez e cabelo pareciam mais brilhantes.
Em algum momento no chuveiro, seus pensamentos se voltaram para o senhor alto, moreno e bonito, que ela sabia agora ser o dono da Alpha's, o próprio Alfa, embora ainda não soubesse seu nome. Ela não tinha coragem de perguntar. Lita achava o apelido esquisito, mas imaginou que o clube de luta devia funcionar tipo uma matilha. Ou então o Alfa se considerava o ápice da masculinidade, um Alfa em todos os sentidos da palavra. Lita resmungou, embora seu corpo concordasse com a avaliação. Talvez fosse um pouco dos dois.
Ela não conseguia parar de pensar nele em seus momentos de silêncio. Seus olhos enquanto a encaravam, seu peito nu pressionando-a contra uma parede, sua mão explorando todas as partes intocadas dela. As fantasias eram mais uma complicação que ela não precisava.
O que aconteceu com não mais conexões emocionais? Ela se repreendeu. Desde que ouviu aquela voz rouca e sentiu seu rico cheiro, Lita havia feito o seu melhor para evitá-lo a todo custo. Mas à noite, era impossível. E com o início das aulas, ela não tinha escolha sobre a hora em que treinava. Então, ela mantinha os olhos em Alex, ou na tarefa em mãos, nem se dando ao trabalho de interagir com os outros frequentadores da academia. Honestamente, parecia ser um acordo mútuo, já que pareciam evitar qualquer parte da academia que ela estivesse usando. De qualquer forma, ela havia passado com sucesso um mês inteiro com apenas dois momentos passados em sua companhia.
Mas ela não poderia fazer isso para sempre. Hoje era seu primeiro dia de aulas e isso a manteria malhando até o horário de fechamento. Ela fantasiou ele aparecendo no vestiário, empurrando-a contra os chuveiros, o calor opaco de sua rigidez contra ela. Ela sacudiu a cabeça bruscamente e mudou a água para fria, esperando conter sua excitação. Não havia ninguém aqui para vê-la sucumbir a essas fantasias, mas elas eram perigosas. Apegos eram perigosos. O que havia nele que a afetava tanto?
Escolher uma roupa foi tão complicado quanto dormir bem.. Seu corpo mais uma vez favorecia grande parte do guarda-roupa que ela havia abandonado depois de começar a namorar Brian, mas ela não tinha certeza se deveria abraçá-lo ainda. Ele ainda morava no corredor e a via regularmente. Ela honestamente tremia só de pensar em sua inveja. Aquelas lembranças eram tão vívidas para ela, que ela descartou a ideia de se arrumar completamente de sua mente.
Ela passou rapidamente pelos cabides e decidiu por uma blusa creme de mangas três quartos que assentava bem sobre sua figura e tinha um decote sutil para mostrar um toque de decote. Ela puxou um pouco a barra, feliz por ainda estar solta o suficiente para se sentir confortável. Lita vestiu uma calça jeans skinny lavagem clara e um par de tênis creme antes de dar um passo para trás para apreciar sua aparência. Fofa, mas não sexy. Feminina, mas não chamativa. Era uma escolha agradável e segura para o primeiro dia de aulas.
Suas roupas voltaram a vestir bem, e ela não pôde deixar de sorrir. Havia tanto tempo desde que ela parecia algo além de pele e ossos. Ela soltou o cabelo e deixou o rosto limpo. Por uma vez, ela olhou para seu reflexo e não se encolheu ou se afastou. Ela se sentiu... quase... bem? Até que o pensamento de Brian no campus a deixou enjoada novamente.
Lita pegou uma barra de café da manhã da caixa nova que havia pego na academia, sua bolsa grande e as chaves do carro antes de sair para a garagem. Ela só tinha chegado ao térreo quando ouviu seu nome.
“Lita?” Brian chamou por ela. Ela virou rapidamente, quase os derrubando quando ele estendeu a mão para seu braço, “Uau... eu... uau,” foi tudo o que ele conseguiu dizer, e Lita arqueou uma sobrancelha para ele. “Você está...” Ela sempre gostou dele assim, encantado e doce. Isso a lembrou do início deles. De como as coisas costumavam ser antes de ela saber a verdade. Ela desejou que esse fosse o único lado dele que ela visse.
“Oi,” ela conseguiu dizer, dando um passo para trás.
“Quer ir juntos esta manhã?” ele perguntou, seus olhos a examinando. “A academia está realmente ajudando, querida. Estou orgulhoso de você.”
Ela não pôde deixar de se encolher, sacudindo a expressão antes que ele percebesse. Suas características físicas eram a raiz de grande parte de seu relacionamento. A cor do seu cabelo. O tamanho do seu sutiã. Suas roupas. O tipo e aplicação da sua maquiagem. Ele estava notando-a fisicamente novamente, e isso a fazia querer mudar.
Ela afastou todas essas emoções caóticas. “Quero tipo me ambientar no campus. Vou dar uma volta e você vai odiar esperar por mim.” Ela fez uma pausa, avaliando a reação dele. Quando pareceu que ele não se importava, ela continuou. “Conversamos depois, Bri? Tenho aula daqui a algumas horas, e ainda preciso pegar meus livros,” ela sorriu timidamente e entrou em seu SUV. Brian apenas assentiu, sorrindo vagamente enquanto estudava sua silhueta.
O SUV chique não estava completamente fora de lugar no campus, mas Lita ainda se sentia desajeitada saindo de algo que gritava privilégio tão alto, especialmente para uma caloura. Mas ela estacionou, pegou o café gelado do Starbucks que havia comprado no caminho e seguiu para a livraria. Levou um bom quinze minutos apenas para entender as direções no mapa do campus. Mas eventualmente, encontrou as grandes portas duplas.
Os estudantes estavam circulando lá dentro, e Lita leu as placas, seguindo as setas até encontrar o que procurava, os livros didáticos. A fila parou ao lado dos fichários e materiais, então ela escolheu suas necessidades enquanto esperava. Tudo era tão brilhante e novo, e ela não pôde deixar de se sentir animada com seu primeiro dia. Este era o início de um novo começo para ela. Ela estava vivendo um dos sonhos de James para ela. Ele sempre quis que ela terminasse a escola para poder cuidar dele em sua velhice e ele não se importava que eles tivessem apenas alguns anos de diferença. Ela engoliu o ardor em seu peito e sorriu com a lembrança. Antes que percebesse, Lita estava na frente da fila.
“Oi! Lista de aulas?” Uma mulher mais velha, com idade universitária, perguntou. Seu crachá dizia Stace, e ela parecia vagamente familiar. Lita entregou o papel que havia impresso em casa, estudando o rosto gentil da mulher como se isso lhe dissesse onde a tinha visto antes.
“Nossa, menina, você tá em que ano? Estou em duas dessas aulas e sou veterana. Você é transferida?”
“Ah,” Lita hesitou, “não, sou caloura, mas sou muito boa em matemática e inglês, então me deram uma dispensa especial. É estranho?” Lita odiava estar insegura de si mesma, mas este era um ambiente tão novo para ela, longe das escolas particulares privilegiadas que ela conhecia. Este era o mundo real, com pessoas reais que não conheciam seus pais ou os zeros em sua conta bancária. Ela não queria errar na parte de se conectar com os outros.
“O fato de você ser boa em matemática e inglês? Além de ser um unicórnio, por favor! Você é um gênio, abrace isso, eu definitivamente faria. O resto de nós certamente exibimos nossas forças.” Ela cutucou uma larga e musculosa omoplata. Stace olhou para Lita por mais tempo do que o necessário, e então balançou a cabeça. “Voltarei em um instante com seus livros.”
Ela retornou alguns minutos depois com uma pilha que parecia impossivelmente alta e o rosto de Lita empalideceu, “Graças a Deus tenho malhado...” ela murmurou para si mesma.
“Ha! É de lá que eu conheço você! Alpha's, certo? Eu sabia que te conhecia de algum lugar, mas não lembrava da tua cara. Sou Stacey, irmã do Alex. Mas pode me chamar de Stace,” ela sorriu amplamente, acenando como se não tivessem acabado de conversar. “Eu estava querendo falar com você, mas o Alex é tão rabugento, e ele monopoliza todo o seu tempo. Ele disse que você não está lá para treinar de verdade, é verdade?” Stace perguntou, “Quero dizer, sem julgamentos se for verdade, só quero saber com o que estou lidando, sabe.” Ela sorriu e piscou.
Lita não sentiu nenhum subtexto de negatividade, então ela exalou e disse, “Sim, eu estava me perguntando quando iria conhecer outras mulheres. Estava começando a pensar que eu era uma pária.”
“Ah, por favor! Você? De jeito nenhum, juro—” Stace se irritou antes de mudar para o espanhol sem pestanejar. Lita soltou uma risada inesperada enquanto ouvia Stace xingar Alex de todas as formas possíveis. Stace revirou os olhos e bufou, murmurando mais insultos.
“Como você sabia que eu falo espanhol?” Lita perguntou entre risos.
“Eu não sabia,” Stace admitiu com um sorriso culpado. “Às vezes o Alex me irrita tanto que eu esqueço de traduzir.” Ambas riram. Stace olhou para as características de Lita sob uma nova luz. “Combinado com o quê? Dominicana ou algo assim?”
“Nada hispânico, que eu saiba. Culpe cinco anos de aulas de espanhol e maratonas de telenovelas. Branca do lado da minha mãe.” Lita corrigiu, “E algo do lado do meu pai. Talvez ilhas ou do Oriente Médio, mas ele não tem certeza e nem eu. Ele é adotado.”
Stace assentiu, “Consigo ver um pouco agora. Um toque de algo extra sob toda essa palidez.” James sempre parecera com Rafi, moreno e magro, quase não herdando nenhuma característica da mãe. Mas Lita era a cara de Diane e não tinha absolutamente nada de Rafi, exceto seu cabelo preto e aquele algo extra que ninguém conseguia identificar.
“Sim, mas passei o verão inteiro dentro de casa. E nunca bronzeio, então não sei. Seu palpite é tão bom quanto o meu.” Lita brincou.
“E se o Alex tiver o que quer, você não terá tempo livre para ficar ao ar livre no outono também.”
“Sim, consigo imaginar. Eu o chamo de idiota na minha cabeça toda vez que ele diz as palavras circuitos de core naquela voz áspera estúpida.” Lita revirou os olhos. “Eu sabia que ele não era branco, mas não conseguia identificar nada específico e odeio assumir.”
“Sim, ninguém nunca sabe o que somos. Porto-riquenha dos dois lados. Herdei isso honestamente. Provavelmente é a tintura que confunde as pessoas,” Stace deu de ombros, apontando para seu cabelo loiro claro. “As pessoas acham que é só um bronzeado falso.”
“Igual. Mas todos que conhecem meu pai me conhecem. Poupa muitos mal-entendidos. Teremos que sentar e trocar ideias em algum momento,” Lita sorriu.
“Sem problemas, conversaremos mais em—” Stace se inclinou para olhar novamente a grade horária de Lita—“estatística avançada.”
Alguém pigarreou atrás de Lita, como se quisesse dizer que as moças precisavam encerrar a conversa. Lita pegou seus livros e seguiu de volta para o balcão de pagamento para seu cesto de material escolar.
“Sente-se lá no fundo, ok? Costumo chegar cinco minutos atrasada para cada aula,” Stace chamou enquanto ela se afastava, acenando adeus. “Não é minha culpa que o café fica no meio do campus.”